Angélica Evangelista, bibliotecária, procurou o iG Queer para denunciar um caso de transfobia que sua filha, uma jovem trans de 17 anos, enfrentou durante meses no ambiente escolar. O relato de Angélica enfatiza os desafios que os estudantes transgêneros ainda enfrentam no sistema educacional brasileiro.
Tudo começou em fevereiro deste ano quando Sarah * (nome fictício), a filha de Angélica, tomou a decisão de revelar sua identidade de gênero na escola onde estuda, a Escola Estadual Professor Gabriel Ortiz, na Penha, zona leste de São Paulo.
experiência escolar segura e respeitosa. No entanto, assim que a identidade de gênero da adolescente foi revelada, uma série de problemas surgiu.
A professora de português, em particular, se recusava a tratar a aluna pelo pronome feminino e a chamava pelo nome registrado, expondo a garota e causando-lhe constrangimento em sala de aula.
A adolescente também enfrentou hostilidade por parte de seus colegas de classe. Alguns deles não aceitavam sua identidade de gênero e se opunham que ela usasse o banheiro feminino. Comentários pejorativos como "vira macho" ou "deixa de ser bichinha" eram comuns, afetando a saúde mental da aluna.
Uma pesquisa realizada pela ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) concluiu que 60% dos estudantes LGBTQIAP+ se sentem inseguros no ambiente escolar por causa de sua orientação sexual. Além disso, 68% já sofreram agressão verbal (bullying) por causa de sua identidade de gênero.
Com a persistência dos constrangimentos, Angélica foi até a escola em março deste ano para conversar com a direção. A bibliotecária afirma que suas queixas foram registradas de forma incompleta pela coordenadora pedagógica, Patrícia, que afirmou que não era necessário detalhar toda a situação, segundo a mãe da jovem.
Diferentemente da primeira vez, dessa vez a mãe insistiu em obter um registro das reclamações.
Em maio, embora algumas questões relacionadas aos colegas e ao banheiro feminino tivessem sido resolvidas, a professora transfóbica continuava suas ações discriminatórias. A escola, no entanto, parecia relutante em tomar medidas significativas.
Angélica desabafa dizendo que a escola sempre ofereceu respostas evasivas, como “precisamos de tempo para orientar os professores” e “sua filha precisa ser forte”. Para a mãe, a direção escolar não demonstrou esforço para que os direitos de sua filha fossem respeitados.
Em junho, a situação se agravou ainda mais, e Sarah * começou a se automutilar. A pressão psicológica atrelada à transfobia que sofria na escola levou a jovem a um estado de profundo sofrimento. Ela não frequentou a unidade escolar durante todo o mês. "Minha filha estava em uma situação tão difícil que ela recorreu à automutilação. Isso partiu meu coração."
Em julho, Sarah *, que também trabalhava em meio período, foi afastada de seu emprego e posteriormente internada em uma clínica psiquiátrica devido à sua saúde mental debilitada. A internação ocorreu no final de julho deste ano, e a jovem segue em tratamento.
Uma pesquisa do Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), de 2019, afirma que os principais motivos de pessoas transgêneros abandonarem o ambiente escolar são a transfobia e a depressão.
“No meio destes acontecimentos eu cheguei a enviar um e-mail para a direção escolar com cópia para a diretoria de ensino”, informa Angélica. Contudo, mesmo acompanhando e entrando em contato com a escola, a mãe descobriu que a matrícula de sua filha havia sido cancelada, pelo motivo de abandono escolar.
De acordo com a Lei nº 7.819/2023, escolas públicas devem notificar ao conselho tutelar faltas de alunos superior a 30% das aulas mensais. O que não foi feito em nenhum momento, segundo Angélica.
"Minha filha não abandonou a escola, ela foi empurrada para a marginalização, para o abandono escolar, pela direção, pela coordenação pedagógica e pela professora e hoje está numa clínica psiquiátrica pelo simples fato de ser uma garota trans.”
Após saber que a matrícula de Sarah * tinha sido cancelada, a mãe explicou toda a situação via telefone, na diretoria de ensino, e reabriram a vaga da jovem. “Quando fui realizar novamente a matrícula da minha filha e pedi para ser atendida pela direção ou coordenação, elas prontamente recusaram.”
Em quatro meses, a direção escolar não agiu para fazer valer os direitos de Sarah *, relata a mãe. “A direção não a respeitou e agora não sabem se ela vai poder concluir o terceiro ano do ensino médio porque ela ‘abandonou a escola’”, denuncia Angélica.
Ela completa: “Para uma instituição que em meses não conseguiu cumprir com seus deveres e compromissos em relação à uma jovem trans, me parece que foi muito fácil optarem por cancelarem sua matrícula após 15 dias úteis de faltas.”
“O ambiente educacional atravessa por completo a vida de uma pessoa em nossa sociedade. É no período escolar que vivenciamos as primeiras experiências de nossa vida e toda a violência que recebemos nesse período marcam para sempre nossa história”, diz Val Chagas, coordenadora pedagógica do Museu da Diversidade Sexual (MDS) e idealizadora da cartilha “ Guia para pensar juntos ”, que busca educar professores sobre a maneira correta de tratar pessoas alunas LGBTQIAP+.
“Todas as formas de violência mascaradas como bullying escolar prejudicam um indivíduo e no caso das pessoas estudantes LGBTQIAP+, os dados sobre defasagem do ambiente educacional por conta da LGBTfobia são alarmantes”, completa Val.
Para a coordenadora pedagógica a cartilha surge como uma “ferramenta de reflexão sobre mudanças cotidianas que interferem na estrutura de um sistema.”
“Pode parecer simples para uma pessoa cisgênero os apontamentos sobre respeito ao nome social e uso do banheiro, por exemplo, mas na verdade, são violências profundas que uma pessoa transgênero sofre.”
Angélica, a mãe de Sarah *, afirmou que a diretora da escola disse que “o Estado disponibiliza material para essas pautas [LGBTQIAP+], mas que essas pautas não podiam acontecer ‘fora de hora’.”
“Quando eu questionava quando seria a hora ela não sabia responder”, declara a mãe da jovem trans.
Para Sarah * não perder o ano escolar, e após cobranças de Angélica por um posicionamento, a escola apresentou uma solução paliativa para o caso da aluna, permitindo que ela fizesse os trabalhos escolares enquanto estivesse internada. Todavia, a mãe afirma que levou muito tempo para que essa decisão fosse tomada, o que não aconteceu quando escolherem cancelar a matrícula da jovem.
“Se a escola tivesse me falado que minha filha teria que fazer lição do hospital, ainda na primeira quinzena de setembro, eu acreditaria que eles estavam tentando respeitar os direitos da minha filha, mas, a escola só me respondeu com um mês e uma semana”, afirma Angélica.
“Foram 37 dias para a escola junto a diretoria de ensino saber o que responder sobre um caso simples de afastamento de uma aluna. E foi esta mesma escola que levou 15 dias, exatos 15 dias úteis, para cumprir com a displicência de cancelar a matrícula da minha filha”, finaliza.