“Protejam nossas crianças trans” foi o pedido de socorro de diversas pessoas trans na manhã desta quarta-feira (6/1) quando veio à tona, após uma reportagem do jornal O Povo, que uma criança trans de 13 anos havia sido brutalmente assassinada em Camocim, cidade cearense localizada a 457 km de Fortaleza. O crime aconteceu na madrugada de segunda-feira (4/1).
Segundo O Povo, Keron Ravach foi espancada até a morte, atingida com pauladas, socos, chutes, facadas e pedradas. O suspeito do crime é um adolescente de 17 anos, que foi apreendido 21 horas depois do crime. Na delegacia, o jovem confessou o crime, disse que encontrou a vítima para fazer um programa sexual e matou a menina por um desentendimento no pagamento. O caso é investigado pelo delegado Hebert Ponte, da Delegacia de Camocim.
Em 2020, os casos de transfeminicídios, até agosto, já haviam superado os números do ano inteiro de 2019, com 129 mulheres trans e travestis assassinadas no país. Em 2019 foram registradas 76 mortes. No estado do Ceará, em 28 dias, quatro mulheres trans e travestis foram brutalmente assassinadas.
Keron faria 14 anos no dia 28 de janeiro, um dia antes do Dia Nacional da Visibilidade Trans e sonhava em ser influenciadora digital, como muitas outras adolescentes de sua idade. Segundo O Povo, a rotina dela era estudar e brincar com os amigos na praça da cidade. A maioria dos amigos eram LGBTs e iam para a praia depois das brincadeiras. Keron morava com a família e tem mais 10 irmãos. Sua mãe morreu há um ano, vítima de aneurisma cerebral.
Ray Fontenelle, um amigo de Keron, disse a O Povo que a amiga era tímida, mas se soltava quando estava entre os colegas. “Humilde e cheia de sonhos. Era querida por todos e amava dançar”, conta. Ray afirma que não acredita na versão do adolescente de 17 anos, de que estaria em um programa sexual com a vítima. “Não acreditei em nada de oferecer grana por sexo. Ela era muito humilde”.
Leia também: Quatro mulheres trans e travestis foram assassinadas em 28 dias no Ceará
No Boletim da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), o órgão “descartou que o ato infracional tenha ocorrido em razão da orientação sexual da vítima”. A pasta destacou ainda que a investigação foi remetida ao Poder Judiciário, “para tomar as medidas necessárias em relação à infração do qual o adolescente é suspeito”.
A Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) lamentou o caso em seu Instagram: “Mais uma vida trans perdida prematuramente em função do ódio e da transfobia, já nos primeiros dias de 2021. É assustador pensar que jovens e crianças trans estão sendo assassinadas cada vez mais cedo”.
Na mesma postagem, a ONG lembrou outros as idades das vítimas mais jovens de assassinatos nos últimos anos: “17 anos em 2017, 16 anos em 2018, 15 anos em 2019, 15 anos em 2020, 13 anos em 2021”.
Para Bruna Benevides, pesquisadora e secretária de Articulação Política da Antra, é assustador saber que pessoas trans podem ser assassinadas a partir dos 13 anos. “A morte trans começa na falta de ações e no momento em que os conselhos tutelares estão aparelhadas para a manutenção e defesa da cisgeneridade. Quem protege as crianças LGBTI?”, questiona.
“Nós mal terminamos o trabalho de contabilizar os assassinatos de 2020, onde a mais jovem tinha 15 anos e já nos deparamos com a notícia deste brutal assassinato de uma criança trans de 13 anos que não tem seus direitos assegurados dentro de uma estrutura governamental tomada por fundamentalistas religiosos e de gênero, que tem feito alianças com outros grupos anti trans contra a proteção e a cidadania de nossas crianças”, critica Benevides.
Leia também: Mais mulheres trans e travestis foram mortas neste ano do que em todo 2019
Benevides também critica o posicionamento da SSPDS, de descartar a transfobia no assassinado de Keron. “É sabido que a SSPDS tem um vasto histórico de ignorar e negar os qualificadores de crimes de ódio contra pessoas LGBTI”.
Ela lembra o assassinato de Dandara dos Santos, espancada até a morte em 2017. “O Ceará assassinou Dandara e mais 15 pessoas trans [de lá para cá] e a mesma secretaria divulgou um boletim onde não havia nenhum caso de homotransfobia no estado”.
De lá pra cá, aponta Bruna Benevides, pouco se avançou justamente pela falta de preparo dos órgãos públicos e “a necessidade de uma atualização constante dos operadores de segurança sobre a abordagem, e a forma com que esses assassinatos acontecem”.
Leia também: “Quantas mais terão que morrer?”, indaga ativista sobre Dandara
“As secretarias de segurança dos estados não tem um protocolo específico para casos de violência LGBTIfóbica e optam por descartar esse marcador para tratar como um crime comum, ignorando o que a identidade sexual e de gênero das vítimas nos revelam sobre esses crimes”, avalia a pesquisadora da Antra.
Para Bruna Benevides, o Estado brasileiro deveria se atualizar sobre as discussões acerca da transfobia para erradicar a LGBTIfobia institucional. “Nosso dossiê anual pode ajudar nesse processo. Há ainda o protocolo LGBTI que foi criado pela Clínica de Direito da Fundação Getúlio Vargas para lidar com os casos de violência LGBTIfóbica que deveria ser implementado nacionalmente”.
Quem também analisou o caso a pedido da Ponte foi a socióloga Ana Letícia Lins, pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança. Para Lins, o cenário de assassinatos de pessoas trans no Ceará foi muito preocupante durante todo o ano de 2020. “Vivenciamos um cenário de genocídio das pessoas trans”, define.
Leia também: Misoginia, transfobia e falta de dados: a equação do transfeminicídio
“O que é que o governo do estado, principalmente a Secretaria da Segurança Pública de forma integrada com outras secretarias, tem feito para prevenir os assassinatos que estão acontecendo? Isso não é nítido para gente. Eles não têm adotado políticas públicas, discurso público, lamento público, para que esses casos não continuem acontecendo”, critica a socióloga.
Para Lins, 2021 começa com uma continuação dos casos bárbaros do ano anterior. “O assassinato dessa adolescente de 13 anos foi um caso muito bárbaro. Ela era praticamente uma criança e foi assassinada de um maneira muito cruel, o que deixa nítido a violência perpetrada contra corpos de pessoas trans”.
A crueldade do assassinato, argumenta Lins, demonstra um “não valor” das vidas de pessoas trans. “Esse caso não está solto no tempo e no espaço. É impossível ver esse caso e não lembrar do caso da Dandara, que também foi assassinada de forma muito cruel aqui no Ceará. O assassinato da Keron esta dentro desse cenário maior de genocídio das pessoas trans no Ceará”, completa.
Para a socióloga Ana Letícia Lins, o boletim de ocorrências feito pela SSPDS, demonstra um “total despreparo”. “Eles confundem a orientação sexual com a identidade de gênero e isso deixa nítido que não existe uma preparação para lidar com essa situação. Como a SSPDS descarta que tem ligação com a questão da identidade da Keron, se a investigação não foi concluída? Mesmo que tenham apreendido o adolescente autor do crime, a investigação foi remetida para o poder Judiciário”.
“O mais importante, para mim, é a questão da falta de constrangimento que a SSPDS tem tido sobre esses casos. Temos um caso de muita crueldade contra uma criança, que era uma pessoa trans, e a secretaria trata como a crueldade colocada no assassinato dessa pessoa não tivesse nenhuma ligação com a sua identidade”.
Para Lins, o nível de crueldade no assassinato, por si só, demonstra a transfobia no caso. “Tem sido uma postura da SSPDS descartar a vinculação dos assassinatos com o fato da pessoa ser trans. O nível de violência e ódio envolvidos na crueldade contra esses corpos não é um simples acaso ou detalhe, mas compõe o cenário maior de vitimização dessas vidas. E, ao tratar dessa forma, a SSPDS está vitimando essas pessoas novamente”, conclui.
A reportagem procurou a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social, a Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos, a Casa Civil e a Polícia Civil do Ceará e aguarda retorno.
Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.
Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.
Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.