Em entrevista ao Observatório G, o escritor relatou a sua história, com todos os deleites e adversidades que compuseram a sua jornada, com o intento de ajudar outras pessoas que precisam de um impulso para trazer à luz a plenitude de ser quem realmente são.
Confesso que não imaginei que chegaria o dia em que eu teria orgulho e coragem de contar minha história para o mundo. Uma história que, quando conto, faz muitos amigos e conhecidos chorarem emocionados, e, ao mesmo tempo, ajuda outras pessoas a terem força para enfrentar os desafios de assumirem quem elas realmente são.
Eu nasci em Lorena, interior de São Paulo. É uma das regiões mais católicas e conservadoras do Brasil. Este ambiente carregou de culpa todos os sentimentos que afloraram a partir da adolescência. Sempre soube que era bissexual, mas a aceitação disso veio após anos de muito sofrimento e obstáculos.
Na adolescência, as descobertas eram permeadas por conflitos que me fizeram abafar uma parte da minha identidade. Passei a namorar diversas garotas, foram experiências incríveis. Me incomoda quando vejo pessoas acharem que, por termos desejo pelo mesmo sexo, as relações heterossexuais são falsas, incompletas ou enganosas. Não é verdade.
Na faculdade, conheci meu primeiro grande amor, a Ana Lúcia Tsutsui, também estudante de jornalismo. Nosso namoro e nossas descobertas foram páginas douradas na minha vida. Amo-a profundamente até hoje, mas de outra forma, como amiga, como mãe da minha filha. Começamos a namorar em 2001 e, em 2006, ficamos noivos. Compramos uma casa juntos e celebramos o casamento no dia 7 de setembro de 2007, com uma festa que marcou nossas vidas para sempre. Reformamos nossa casa e, no carnaval de 2010, a Ana engravidou. A Luisa nasceu em 07 de novembro de 2010. Ela é a maior realização da minha vida, o amor incondicional fruto de outro grande amor.
Ana e eu nos separamos em 2013. Foi uma dor profunda, porque de onde eu nasci e da forma como fui criado, casamento é uma relação para a vida inteira. Demorei um ano para aceitar a separação. Durante os dois primeiros anos, procurei incessantemente em diversas mulheres a substituta da minha ex. Ou talvez a retomada do modelo da família tradicional. Também buscava uma esposa para me dar mais filhos, o tal modelo família-margarina que era uma grande obsessão psicológica.
Em 2015, me tornei amigo da premiada poetisa brasileira Cássia Janeiro, quando ela foi minha aluna de um curso de crítica de cinema na Academia Internacional de Cinema, onde eu era coordenador geral. Na ocasião, ela contou um episódio, de anos antes, de uma doença que atacou seu sistema imunológico e daria a ela, segundo os médicos, poucos meses de vida. Foi então que ela sonhou com o Sai Baba, um líder espiritual, que a conduziu, pelo sonho, até o Tibete. Ela pegou as malas e foi. Voltou e se curou. Nenhum médico era capaz de explicar o que havia acontecido.
Naquela época, eu já era agnóstico. Fiquei profundamente decepcionado com o padre que fez o casamento de minha irmã, quando ele disse que minha vez havia passado, pois eu era divorciado. Rejeitei as religiões a partir daquele dia. Mas a história da Cássia me comoveu. E por causa dela nos tornamos amigos.
Em junho de 2015, ela me encontrou para um café. No meio da conversa, perguntou se eu conhecia alguém que podia ceder um quartinho por alguns dias, porque o filho dela estava se separando de seu noivo. Lembro-me de olhar para o chão, pensar, e então responder: “ele pode ficar em casa”. Uma semana depois, conheci o César Janeiro Groke, filho dela. Nos apaixonamos no primeiro beijo. Naquela época, felizmente, eu estava fazendo terapia para “exorcizar” meu casamento e me livrar do peso da busca pela família heteronormativa. A terapeuta foi a primeira pessoa para quem eu falei, em voz alta, que eu era bissexual.
César e eu vivemos uma paixão intensa. Em vez de dias, ele acabou ficando em casa meses…anos. Mas haveria muitos obstáculos para ficarmos juntos. Alguns meses depois, a Ana veio me perguntar sobre o tal “tio Cé” que a Luisa, então com 5 anos, falava tanto. Mas bastou trocarmos um olhar e ela entendeu o que estava acontecendo. Me desejou felicidades. Chorei muito. Desde então, ela e sua família, que moram no meu coração, não só aceitam o César como convivem como grandes amigos. Quando contei a Luisa que o tio Cé era meu namorado, sua reação foi: “então isso significa que ele não vai precisar ir embora?”. E então ela sorriu. Aos 5 anos, foi capaz de entender o que grande parte dos adultos do planeta não é capaz. Pouco tempo depois, minha irmã, Louise, soube do César. Desde então, ama-o como membro da família e como um amigo especial.
Em 2016 viajamos para a África do Sul. Mas não postávamos fotos juntos, porque nenhum amigo meu, nem minha família, ainda sabia dele. O problema é que o César sofreu muito na infância e na adolescência. Apanhou e sofreu todo tipo de bullying na escola. E sua mãe se tornou militante da causa LGBTQIA+ e também parte do grupo Mães pela Diversidade, que abre a Parada de São Paulo todos os anos. Resumidamente: viver escondido era insustentável para ele.
Foi então, logo após a viagem, ele terminou a relação. Não podia viver à sombra depois de tudo que passou na vida. Eu então tomei uma decisão impulsiva. Peguei o carro numa quarta-feira de tarde, desliguei o celular, viajei 200km até Lorena para contar para meus pais. Entrei às 19h em casa. Saí às 19h07. Infelizmente, ouvi coisas que deixaram claro que esta relação não seria aceita na casa deles. Rompi a relação. Ficamos seis meses sem nos falarmos e sem que a Luisa visse os avós paternos. Às vésperas do Natal, ouvi um pedido de desculpas e de reconciliação dos meus pais. Eles decidiram “respeitar” minha relação, mas na verdade eles se blindaram dela. Não falavam do assunto, não pronunciavam o nome do César, não conviviam, não visitavam minha casa. Eu decidi aceitar essa “reconciliação” porque não queria ser o culpado por minha filha não conviver com os avós por uma questão pessoal minha.
Houve outro rompimento, anos depois, porque eu ainda não era capaz de abrir a relação para o mundo e para meus amigos. Tomei coragem só em 2018, no ano das eleições presidenciais. Convidei meus amigos de faculdade para conhecer minha nova casa e o César. Foi muito difícil abrir esta parte da minha vida para aqueles que acompanharam um outro lado da minha vida durante a faculdade. Mas em geral, todos aceitaram bem, e continuamos grandes amigos. Dos meus amigos do interior, alguns se distanciaram, não souberam entender por que eu escondi essa história por tantos anos. Outros, mesmo muito religiosos, casados e com filhos, reagiram tão bem que a amizade se tornou ainda mais especial.
Em junho de 2019, postamos nossa primeira foto como namorados juntos. Novos amigos surgiram, novas experiências tornaram a vida muito mais completa, compensando todos os desafios vividos no percurso. O César ainda não conhece a cidade onde eu nasci. Nunca viu meus familiares. Meus pais o viram duas vezes apenas.
Se eu encontrasse um gênio da lâmpada que me dissesse que eu poderia voltar para 2013 e evitar o fim do meu casamento com a Ana, permanecendo com o padrão de família que parte do mundo insiste em chamar de normal, o que eu faria? Eu diria não ao gênio. Tudo que eu vivi, por mais difícil que tenha sido, me tornou um ser humano muito mais forte, muito menos suscetível a cair e muito mais resistentes aos desafios diários da vida. Mas, acima disso, me tornou mais completo. Aceitarmos a nós mesmos é libertador. É uma fortaleza. Não sou militante LGBTQIA+, embora defenda os direitos a todos que cruzam meu caminho. Minha militância é mostrar, todos os dias, a normalidade da minha relação, por meio de fotos, de palavras e de gestos.
O César Janeiro Groke é chef vegano. Seu amor à vida dos animais e ao direito deles de viver dignamente é admirável. Eu trabalho com cultura e sou professor universitário. A Luisa sonha em ser veterinária, já aos 10 anos de idade. Juntos, somos uma família. Feliz. Forte. Completa.