Hoje é comemorado o Dia dos Pais, data que celebra uma figura tão importante na vida de muitos brasileiros. Mas, o que é ser pai? O iG Queer conversou com três pais trans para entender como é lidar com isso, suas particularidades, e como esta data merece ser comemorada por todos os dias de pais.
“É ter responsabilidade, compromisso. É ser um ponto de referência, de inspiração e segurança, não no modelo super-herói, porque isso é irreal, inexistente e mitológico, mas no modelo humano mesmo, na possibilidade real de sermos errantes e aprendizes”, defende Cézar sobre o que é ser pai.
“É um ato de amor, e amor recíproco, e isso é independentemente de gênero. É a possibilidade de gerar um novo mundo; um novo universo, porque nos questiona sobre a responsabilidade de fazer isso: qual o novo mundo, qual o novo universo que eu gostaria de viver ou que eu gostaria que as minhas filhas vivessem?”, pontua Noah.
Noah Scheffel , 35, é mãe de uma filha, e pai de outra. Isso porque ele teve sua primeira filha, Anita, antes de transicionar, e registrou sua segunda filha, Helena, já em um corpo masculino ao lado de sua esposa, a mãe dela.
Anita, 9, e Helena, 6, são duas figuras importantes na vida dele, pois Noah, ama as duas. Mesmo, que, no caso de Anita, ele seja mãe dela; o Dia dos Pais será comemorado por ele enquanto pai de Helena.
“Vou, sim, comemorar o Dia dos Pais. Acho muito importante para mim, é uma data muito significativa, que eu ressignifiquei na minha vida, até por não ter tido um pai presente, mas de poder ser agora, é importante para mim ser pai da Helena. Por isso, comemoro essa data, sendo ela comercial ou não, ela é uma data minha também e eu mereço comemorá-la, assim como todas as outras pessoas que desempenham esse papel e se sentem confortáveis com a data e querem comemorar, elas merecem”, justifica.
“O que denomina ser mãe de uma filha e pai de outra não é o fato de eu ter dado à luz a uma e não ter dado à luz a outra, e sim a questão de quando isso aconteceu, pois uma tive antes de transicionar e a outra após a transição”, conta.
Por ser pai apenas de Helena, ele expõe que a relação dos dois sempre foi muito natural, já que quando ela foi registrada por Noah, ela era pequena: “Em relação à Helena, foi muito mais natural porque ela não tinha essa figura paterna na sua vida, só a materna, que é minha esposa. Eu decidi registar ela como minha filha e não me arrependo, pois é muito linda essa relação de sempre ser visto por ela como pai. Com ela é ‘pai’ para cima e para baixo o dia todo, se deixar”, diz contagiosamente.
No caso da sua filha mais velha, não muda. Inclusive, o pai de Anita também apoia essa relação, embora Noah acreditasse que não fosse. “Ele foi a pessoa que esteve ao meu lado quando contei para Anita que sou homem, e até hoje ele me apoia”.
Para as filhas é muito natural tudo isso, pois ambas sabem que, de uma, Scheffel é mãe e, de outra, o pai, pois ele explica que o diálogo sempre foi muito presente. “Hoje elas conseguem tirar dúvidas de coleguinhas, por exemplo, porque priorizamos sempre o diálogo aberto sobre gênero, sexualidade e outros assuntos que são pertinentes”, cita.
Noah reconhece que a realidade de outros homens trans existem e não se vê como a representação universal e única da paternidade ou a parentalidade trans. O mais interessante, é que, em seu caso, ele encara os dois papéis.
Todavia, seu apontamento é bastante concreto. Cézar Sant'Anna , 34, assim como Noah, também teve sua filha antes de transicionar. Cézar é o pai de Fernanda e, como Noah, defendeu: “Nenhuma paternidade trans tem receita”.
Cézar teve sua filha Fernanda, 16, ainda em um corpo feminino. Só quando fez nove anos ele resolveu transicionar e contar para ela, que lidou sempre muito bem com a mudança de gênero do pai porque Cézar prezava pelo diálogo aberto. Além disso, ele também tem um enteado que convive com ele desde os seis anos de idade: “Diariamente exerço o papel de pai afetivo dele”.
“Nunca tivemos [ele e a filha] nenhum desentendimento, além dos que naturalmente acontecem na rotina, nas obrigações, responsabilidades que vão surgindo com o crescimento e desenvolvimento dela. Além da relação de pai e filha, nós também temos uma amizade”.
Outro ponto que ele levanta é acerca de como o machismo pode afetar também pais trans, assim como os cisgêneros. Cézar compreende que todos os homens trans são vítimas de diversas violências, inclusive o machismo. E que, como pai, ele visa fugir disso, mas sabe que não é uma regra.
“Não tem como eu afirmar que todo homem trans não é machista. Até porque, uma maneira de fugir dessa violência é se aliar ao opressor, então existem homens trans que reproduzem machismo e entre outras violências”.
“Na minha paternidade eu procuro ser a chave de transformação de tudo que eu fui alvo e que me fez mal. Então, eu tento ao máximo estar conectado com os assuntos e afinidades da minha filha. Essa aproximação gera confiança, intimidade e base para que as outras questões da vida sejam mais leves”, enfatiza.
E, neste dia, ele também irá comemorar o Dia dos Pais, mas ele conta que, independentemente da data, há celebrações diárias. Ele vê neste dia uma maneira mais emblemática porque é mais leve, mais alegre e que passa ao lado dos filhos.
Rodrigo Bryan , 35, é outro um pai trans que relata o seu dia a dia. A história dele é mais recente, pois teve sua filha Isabella, que tem agora um ano e quatro meses, com a sua esposa trans, Ellen Carine. Diferentemente de Noah e Cézar, Rodrigo já teve sua filha após a transição. Eles decidiram compartilhar todo esse processo e conteúdo do dia a dia no canal do Youtube “Fofuxos Trans”.
Ele sempre teve vontade de ser pai, mas nunca imaginou gestar, pois sempre se relacionou com mulheres cis e imaginava que elas gestariam. “Quando conheci minha esposa atual, também mulher trans, eu abri minha mente para a possibilidade de ter um filho biologicamente”, recorda.
Rodrigo enfatiza que a relação familiar deles é bem conjunta e sólida, já que é casado com sua esposa há quase três anos. Todos os dias ele sente orgulho da sua escolha de ser pai e, neste dia, ele conta que ficará “grudadinho” com sua filha, pois quer fazer destes momentos, lembranças inesquecíveis para que ela se orgulhe e lembre-se sempre de Rodrigo como seu herói.
“Os pais trans têm esse papel de construir uma paternidade mais sólida, mais presente, e julgo que todos os pais, em geral, deveriam realizar o mesmo, pois o tempo passa e o que resta é lembranças dos pequenos”, avalia.
Como sua filha ainda é uma bebê, ele ainda não introduz assuntos sobre gênero e sexualidade, mas conta que ao passo que ela crescer, tratará sobre isso diariamente. “Prepararemos ela para lidar com certas situações que irão surgir no futuro”.
Cézar relembra que ficou recentemente chocado ao descobrir que, duas pessoas trans morreram três anos depois de terem ido em um programa de entrevistas. À época, tinham quatros pessoas no programa, todas elas eram pessoas trans. “50% daquelas pessoas tiraram a própria vida por consequência de todas as violências sociais que sofreram. Então, é muito importante naturalizar as nossas existências, é fundamental falar incansavelmente sobre nós, principalmente para fora da nossa bolha social, e para muito além das datas comemorativas, mas diariamente", ressalta.
“A gente não vê a paternidade trans sendo colocada em pauta em lugar nenhum. Ela não é demonstrada em campanhas publicitárias neste dia. É preciso pensar sobre como pais trans estão sendo colocados nas questões organizacionais das empresas. Como que um homem trans que gesta uma criança é amparado dentro de uma empresa privada, por exemplo. É importante a gente naturalizar a existência destes pais, para não existir esse apagamento, de não estarmos em lugar nenhum. Eu não vejo a sociedade e a indústria, em geral, falarem sobre isso”. Noah argumenta.
Rodrigo também concorda com ambos: “Somos homens e merecemos ser reconhecidos como tal, com o gênero que nos identificamos. Além disso, temos o direito de formar nossas famílias como qualquer outra”, conclui.
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