Falar sobre representatividade LGBTQIAP+ na cultura pop e no universo geek inclui vertentes muito distintas que, ao mesmo tempo, conversam entre si. Uma delas é o mundo dos desenhos: desde as séries animadas aos filmes dos estúdios Pixar , o que não faltam são produções que fizeram parte da infância de muitos adultos e que estão marcando presença na adolescência de outras gerações.
Há exemplos recentes de desenhos explicitamente LGBTs que fazem muito sucesso entre o público e levantam debates importantes, como “Steven Universe”, “She-Ra”, “Gravity Falls”, “Clarence”, entre outros – sem contar as várias teorias sobre personagens da Disney que supostamente fazem parte da comunidade também .
Independentemente de serem canon – oficiais – ou headcanons – não oficiais –, personagens LGBT são representações claras das vivências desses indivíduos, e ter contato com eles é uma luz de esperança levando em conta o quanto a comunidade é organicamente excluída em diversos espaços. Para entender melhor a importância de produções inclusivas, o iG Queer conversou com Érica Modesto , cineasta, professora do ramo audiovisual na EBAC, LGBT e entusiasta dos desenhos. Ela comenta que a principal mudança no cerne das produções voltadas para a comunidade queer foi trazer os personagens para uma ótica humanizada, realista e que foge do padrão tirano por meio do qual eram vistos inicialmente.
“A primeira coisa que aconteceu foi tirar a temática LGBT de um lugar de vilania. Comecei a pensar em vilões da Disney, por exemplo, e todos eles têm trejeitos afeminados que são socialmente ligados à comunidade, como o vilão de ‘O Corcunda de Notre Dame’ ou o próprio Scar, do ‘Rei Leão’”, explica.
De acordo com ela, a desconstrução essa visão pejorativa ocorreu ao mesmo tempo em que outros ideais começaram a se dissolver para dar lugar a pautas novas e menos atreladas aos padrões cis-hétero normativos.
“Quando a indústria começou a repensar isso [personagens LGBT como vilões], em paralelo foi deixado de lado o princípio da princesa salva pelo príncipe héteo top. De certo modo, não tinha como ser diferente; as coisas não poderiam funcionar do mesmo jeito para sempre e algo precisava ser feito a respeito. Era completamente inaceitável relacionar todo um grupo de pessoas a uma posição de vilania, empacotar e vender para crianças”, destaca.
Contudo, a especialista aponta que essa mudança foi “muito gradual”. Assim que a indústria percebeu que novos caminhos estavam sendo bem aceitos, vieram as inovações de fato.
“O streaming é o espaço no qual você consegue testar formatos de uma maneira mais tranquila do que na TV aberta ou no cinema, por exemplo. O movimento foi tomando forma tanto nos desenhos infantis quanto nos adultos, que também eram um reduto de LGBTfobia e misoginia”.
Modesto destaca ainda que os desenhos possuem uma força de influência e atuação que outros gêneros de produção audiovisual não possuem, o que o torna uma arma poderosa quando se trata de pautar debates e promover reflexões.
“O desenho vai até locais nos quais um ser humano, mesmo por meio da atuação, não consegue chegar em um filme. Esse gênero quebra uma série de barreiras, o que faz dele o local apropriado para trazer essa discussão [representatividade LGBT], além de outras questões muito importantes como racismo, machismo e demais demandas que são tão delicadas. Todas elas podem e devem ser faladas dentro das animações porque elas proporcionam uma linguagem muito maravilhosa por meio da qual é possível tocar diretamente no coração das pessoas”.
Em retrospecto, seria mentira afirmar que a apresentação de personagens cuja expressão e comportamento fogem do padrão cis-hétero é totalmente recente. De fato existe maior mobilização e desenvolvimento aprofundado agora, mas não é de hoje que alguns personagens despertam a possibilidade de ir contra as normas vigentes. Érica cita um exemplo clássico e que lhe marcou de maneira bem pessoal.
“O Pernalonga”, afirma com veemência. O mascote dos estúdios Warner Bros surgiu nos anos 1940 e é o personagem mais popular das séries Looney Tunes e Merrie Melodies. Era muito comum assistir episódios em que ele se “disfarçava de mulher”, o que para a época já era excêntrico e mesmo que não fosse abordado da maneira correta pode-se relacionar esse hábito tanto à cultura drag quanto à própria desconstrução dos estereótipos de gênero.
“Ele fez mais pela minha compreensão de mundo do que todos os meus professores da escola juntos. Esse personagem era a desconstrução de tudo. Ele beijava os caras para desconcertá-los e conseguir fugir das encrencas. O Pernalonga não tinha medo de usar um batom ou um vestido e assumir o comportamento e postura que lhe desse na telha. Para uma criança, ver isso é algo maravilhoso. É sobre ser quem é e fazer o que te faz feliz”, destaca Modesto.
Outro clássico que conta com um personagem LGBT, dessa vez totalmente canônico – oficial – é “Scooby-Doo”. Érica cita a Velma, que foi confirmada pelo produtor da série como mulher lésbica, e diz que ela é um ótimo exemplo de como pessoas LGBT podem – e devem – ser representadas nos desenhos, principalmente porque na maior parte das vezes a representação queer em quaisquer obras é considerada a partir da existência de um casal LGBT.
“Esse é um desenho de aventura, não de romance”, diz Érica. “O foco é a história de um grupo de amigos que se unem para mostrar que os seres humanos são muito piores do que monstros. Eu adorava ‘Scooby-Doo’ quando era criança e queria ser como a Velma, não como a Daphne, porque ela era uma referência de sagacidade e inteligência. Quando eu descobri que foi confirmado que ela é lésbica, fiquei justamente pensando no fato de que isso nunca foi explícito, mas não deixava de fazer parte dela, porque a comunidade existe independentemente de alguém se assumir publicamente ou não”, discorre.
Pensando em linha do tempo, demorou até que os desenhos começassem a abordar explicitamente a sexualidade e identidade de gênero dos personagens. “Hora de Aventura”, por exemplo, retrata o relacionamento entre Marceline e Princesa Jujuba, e a série estreou em 2010. Já “Steven Universe” encontrou o coração do público em 2013, e “She-Ra”, em 2018. “My Little Pony”, por sua vez, só mostrou o primeiro casal LGBT formado por duas pôneis em 2019.
Mesmo dentro do streaming, ainda é arriscado investir em plots – enredos – LGBT, principalmente porque a LGBTfobia está enraizada nas estruturas sociais e, portanto, sempre encontrará obstáculos para conseguir marcar presença sem represálias, ainda mais quando crianças estão envolvidas no meio. Érica Modesto cita como exemplo a falsa ideia de que expor uma criança a um desenho LGBT fará com que ela “vire gay”.
“Me espanta demais a hipocrisia. Muitas vezes, as crianças não são proibidas, por exemplo, de assistir animações com violência, porque ninguém pensa que ela vai virar uma potencial assassina se fizer isso ou algo do tipo, mas dizem que ver um beijo homoafetivo vai destruir a mente dela. Isso não faz sentido”, comenta.
“O conservadorismo é uma força muito grande”, continua a especialista. “E não há como dizer que a religião não influencia diretamente nisso também, porque vira uma doutrina de ‘sim’ e ‘não’. Olhar criticamente para as coisas nunca é uma opção nesta ótica, tanto que as ações sempre envolvem boicote e o discurso do ‘não veja’ ou do ‘não consuma’ porque ‘isso vai gerar uma consequência negativa para você e para a sua família’. É um filtro moral que sempre vai existir, mas acho que a indústria vai continuar insistindo nesse nicho. As gerações atuais já estão tendo muito mais representatividade do que eu tive, por exemplo, então isso me deixa otimista”, observa.
Além da iniciativa por parte da indústria, o apoio e engajamento do público também é fundamental para a evolução constante das representações LGBTQIAP+ em desenhos e animações. Érica explica um pouco mais sobre essa dinâmica e como é importante que o público entenda o poder que possui nas mãos.
“Assim que alguém pisa em um set audiovisual, a primeira coisa que se aprende é que essa área está diretamente ligada à publicidade, que por sua vez reflete o desejo do público. Ela mapeia as macrotendências para saber como transformá-las em produtos, então de fora para dentro é o público que transforma essa indústria. Precisamos impulsionar essa demanda para que os produtores pensem: ‘Olha, vamos fazer assim porque tem gente querendo consumir, há pessoas curiosas sobre esse nicho e famílias que estão começando a desconstruir os filhos por meio dessa mídia’”, esclarece.
A especialista toma como principal exemplo a Pixar, que é referência mundial no que diz respeito a animações. De acordo com Érica, o estúdio está “colocando os pés na água” com relação à representatividade LGBT explícita. “Isso ficou bem perceptível com ‘Luca’”, comenta Modesto. “Foi uma forma de perceber como está a adesão do público”. Ela conclui destacando que, acima de tudo, consumir desenhos e animações não significa deixar de lado o viés político do ramo, uma vez que tudo que envolve o cotidiano e a vida de pessoas LGBT está dentro das demandas sociais dessa população.
“Não estamos mais na fase de viver em armários. Claro, ainda há um caminho longo a percorrer, mas o consumidor precisa entender a força que tem, principalmente em termos de demanda. É quem assiste que pode exigir maior posicionamento das produtoras tanto de forma sutil quanto de forma não sutil – precisamos nos mobilizar quando for necessário e fazer barulho mediante às barbaridades que surgem. Não tem como dissociar a nossa forma de viver daquilo que acreditamos, afinal a política é isso: um reflexo das nossas crenças em termos de sociedade.”