A infância e a adolescência são fases da vida que impactam diretamente na construção da nossa identidade e no desenvolvimento de características essenciais para um amadurecimento sadio. Autoestima, noção de pertencimento, acolhimento e referência são algumas dessas características que, se mal construídas nestes períodos, podem acarretar em danos que vão perdurar durante toda a vida.
Este, muitas vezes, é o caso de pessoas LGBTQIAP+, que estão mais sujeitas a crescerem sem o apoio familiar necessário para garantir a segurança de uma infância e adolescência com experiências espontâneas. Parte desta negação à expressão de identidade e sexualidade resulta em um fenômeno, que na área da saúde, é conhecido como “adolescência tarda”.
O psicólogo, mestrando no Programa de Estudos da Condição Humana pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pós-graduado em Africanidades e Cultura Afro-brasileira pela Universidade do Paraná (Unopar), Daniel Amancio, explica o conceito do fenômeno.
“A adolescência tardia se caracteriza quando o comportamento emocional atribuído às idades de 12 aos 19 anos é vivido tardiamente. É um fenômeno muito observado na comunidade LGBTQIAP+, já que seus integrantes não têm a mesma liberdade de expressar suas identidades como pessoas não LGBT+”, afirma o especialista.
Para Amancio, enquanto adolescentes não LGBT+ estão vivendo experiências espontâneas afetivo-românticas e engatinhando na vida sexual , o mesmo não é permitido para integrantes da comunidade queer: “O adolescente LGBT+ vai viver o oposto: experiência de exclusão, não aceitação e não pertencimento, o que o impede de viver essa fase tão importante da vida no momento certo”.
O psicólogo aponta que outro fato que explica a ocorrência da adolescência tardia em pessoas da comunidade queer é que estas levam mais tempo para entenderem suas identidades de gênero e orientações sexuais, justamente pela falta de apoio social e familiar.
“ Esse processo pode ser bastante conflituoso , principalmente dependendo da cultura e crenças em que estas pessoas estão inseridas. Por exemplo, se é um ambiente religioso e conservador, a LGBTfobia pode ser internalizada, o que afeta o senso de dignidade, merecimento e humanidade, que acabam sendo questionados”, diz o psicólogo.
Como resultado negativo das condenações religiosas e morais na vida de um LGBT+ quando adulto, Amancio lista danos em áreas como: “autoestima, confiança, estabelecimento de relações interpessoais, relacionamentos amorosos, falta de perspectiva, além do adoecimento com sintomas de ansiedade, depressão, e, inclusive, pensamentos suicidas ”.
O profissional de saúde explica que o ciclo de repressão só é quebrado quando as pessoas LGBT+ atingem a independência financeira, e é neste momento que a adolescência tardia pode surgir.
“Essa vivência tardia só é possível, em um primeiro momento, quando a pessoa LGBT+ sai da casa dos pais ou do responsável. Clinicamente é um ponto em comum que eu vejo nos pacientes da comunidade. Quando a pessoa está longe da família, alcança a independência financeira, sai de uma cidade pequena e vai para uma maior ou entra na universidade, por exemplo, é quando ela se sente mais livre para expressar a sua identidade e sexualidade”, aponta.
Para o psicólogo, a idade média em que o fenômeno da adolescência tardia ocorre é entre 25 e 30 anos, contudo não é exclusivo desta faixa etária. Ele afirma que tem pacientes com mais de 50 anos que estão começando a viver experiências que não foram possíveis previamente. Para além da idade, Amancio aponta que há outros marcadores que devem ser considerados.
“É importante observar os marcadores sociais como condição econômica, gênero, regionalidade, raça e cor porque essas condições vão interferir para que uma possível adolescência tardia de fato ocorra na vida de uma pessoa LGBT+”, finaliza.
Para o psicólogo e mestrando, o peso da adolescência tardia é maior para as pessoas pretas da comunidade LGBT+ , que precisam enfrentar um desafio duplo: o racismo e a LGBTfobia.
“Esses dois marcadores intensificam as experiências marcantes ao longo da vida como o preterimento em relações amorosas, a exclusão dentro da própria comunidade LGBT+, as barreiras no desenvolvimento econômico e social, a hiperssexualização e a objetificação , por exemplo”, aponta Amancio que salienta a dificuldade de estabilidade financeira de pessoas negras, fato que nega por mais tempo a possibilidade delas vivenciarem a sexualidade e identidade de gênero de forma espontânea.
O assistente social, doutorando em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e militante da causa negra, Adeildo Vila Nova, de 47 anos, é uma pessoa que vive estes dois recortes e que sente que precisou esperar um pouco mais para iniciar sua vida afetivo-sexual.
“Eu sou do município de Caruaru, vim de uma cidade do agreste pernambucano, e fui para São Paulo muito cedo, com 14 anos. Quando cheguei ao Sudeste, fui recebido por pessoas da minha família que moravam na região, mas logo percebi que para ter o apoio deles naquela fase da minha vida teria que me adequar às condições impostas. Só consegui me livrar daquelas amarras quando alcancei minha independência financeira”, afirma.
Vila Nova ainda reflete que preferiu reprimir sua sexualidade e limitar as experiências para não correr o risco de ser expulso de casa. Pensando nos dias atuais, o doutorando enxerga que houve um avanço na discussão sobre as comunidades LGBT+ e negra, e que o cenário é diferente de quando ele viveu suas primeiras experiências.
“Eu enxergo que hoje em dia há uma abertura muito maior do que no meu tempo de adolescente, por conta de uma série de avanços que tivemos em prol dos direitos LGBT+, na forma dos meios de comunicação em abordar o tema, na cultura e na sociedade como um todo. Falo isso tendo como base também a própria militância do movimento negro , já que também há um grande avanço na discussão sobre a questão racial”, aponta o assistente social que, contudo, também compreende que ainda há caminhos a serem percorridos.
“Apesar de tudo isto, vejo que ainda há muito o que ser discutido já que outros marcadores como região e grupo familiar também incidem na forma como o adolescente LGBT+, em especial o negro, vai poder viver a sua experiência de sexualidade e afetividade de forma plena. Em pleno século 21 ainda nos deparamos com notícias de LGBT+ expulsos de casa, ainda é uma realidade”, finaliza.
Quando se trata de LGBTfobia, não se pode deixar de focar na experiência de pessoas trans , que são as mais marginalizadas da sigla e que mais têm seus direitos renegados na sociedade, em especial a brasileira que lidera o ranking de países com mais assassinatos de pessoas LGBT+ no mundo .
Só em 2021, segundo o Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil, ocorreram 316 mortes de pessoas queer de forma violenta no país. Dessas mortes 285 foram assassinatos, 26 suicídios e cinco por outras causas.
Se as pessoas trans, muitas vezes ainda estão lutando pelo direito de existir, temas como infância e adolescência trans ainda não estão no centro da discussão, mas precisam emergir, já que a existência destas pessoas deve ser reconhecida desde muito cedo.
“Minha transição foi tardia, ocorreu entre os 26 e 27 anos e apenas quando eu já tinha autonomia financeira, quando montei meu primeiro salão de beleza”, conta a empresária e ativista da causa trans Andréa Brazil, de 49 anos, que afirma que só passou a vivenciar experiências de afetividade depois do início da transição.
“Me dá a impressão de que no momento em que eu assumi a identidade feminina de uma vez, os homens começaram a se aproximar de mim de uma forma diferenciada. Comecei a ser mais cortejada. Isso para mim foi como vivenciar uma adolescência tardia porque eu não fui uma adolescente trans, então não experenciei essas coisas antes”, afirma a empreendedora.
Andréa diz que, para que uma pessoa trans ou travesti possa vivenciar sua adolescência na fase correta é preciso, primeiro, que a família a entenda e a respeite desde criança. Assim como o assistente social Adeildo, ela afirma que enxerga mais abertura à discussão nos dias de hoje, mas que ainda há trabalho pela frente. Para ilustrar seu ponto de vista, ela traz um relato.
“Eu conheci uma adolescente trans que já estava vivenciando ruas e esquinas, ela tinha sido aliciada para o universo da prostituição . A mãe, uma fanática religiosa, tinha ameaçado expulsá-la de casa se a adolescente continuasse expressando sua identidade de gênero. Quando eu soube dessa história, eu avisei que se a menor fosse expulsa de casa eu denunciaria a mãe para o Conselho Tutelar”, relata Andréa.
Para ela, sua atitude trouxe autonomia à adolescente, que passou a se impor em casa: “Foi um tiro que saiu pela culatra. Ela passou a enfrentar a mãe e não aceitar mais a transfobia. Isto não ocorreria no passado, não tínhamos esta segurança em buscar nossos direitos”.
Andréa conta outro relato que exemplifica bem a questão da adolescência tardia na vivência trans. Ela teve uma amizade com uma pessoa que fez a transição próximo dos 60 anos. A empreendedora afirma que percebia uma necessidade grande da amiga de "recuperar o tempo perdido".
“Convivendo com ela percebi um comportamento infantilizado muitas vezes, parecia nitidamente que ela queria resgatar o tempo de adolescência perdido. Ela dizia que era uma nifetinha, uma garotinha, usava roupas muito curtas em lugares inapropriados. As pessoas tiravam sarro da cara dela pelas costas”, finaliza.
Fonte.https://queer.ig.com.br/