O casal trans Erika Fernandes e Roberto Bete , influenciadores digitais, costuma dizer que a paixão entre eles foi à primeira vista. Juntos há três anos, com o desenvolver da relação, a vontade de aumentar a família surgiu e eles decidiram então que teriam um filho biológico, mas Erika queria ir além.
Como toda a mãe, ela tinha o sonho de poder amamentar seu bebê e desenvolver essa conexão que é especial e única. Uma relação que une a criança à mulher. Mas, sendo uma mulher trans, como isso seria possível? A fonoaudióloga neonatal e consultora internacional de amamentação Kely Carvalho explica que, na literatura internacional, há pelo menos um caso registrado do tipo, que ocorreu em 2018, o que ela considera que foi “praticamente ontem”.
“É super-recente. O caso descreve uma mulher trans que amamentou o filho da companheira por mais de seis meses. Até este período ela amamentou só no peito, com leite que ela produziu, depois ela precisou da complementação, o que é bem comum inclusive para mulheres cis”, explica a especialista. Kely foi uma das responsáveis por acompanhar a amamentação que Erika deu para seu filho, o pequeno Noah , que está com sete meses.
A influenciadora explica que quando o casal decidiu engravidar, precisou interromper a hormonização, referente à transição de gênero , por cerca de um ano e meio.
“Paramos para que eu pudesse voltar a produzir espermas e o Beto a ovular, e assim conseguimos ter condição de engravidar. Chegamos a fazer acompanhamento médico para checar se estávamos com algum atrofiamento ou algum outro tipo de questão que impedisse a gradivez, inclusive. No quarto ciclo menstrual dele, nós conseguimos”, relembra Erika.
Todo o pré-natal foi realizado no ambulatório trans do Centro de Referência e Treinamento (CRT), de São Paulo , local onde o casal também realiza seu tratamento hormonal de transição. Com isso, Erika relata que ela e Beto não sofreram transfobia durante o processo, uma vez que “toda a equipe é preparada para atender pessoas trans”.
“Tivemos a sorte de contar com profissionais aptos que não foram transfóbicos. Lá mesmo fizemos todo o pré-natal e eles nos indicaram a maternidade onde o Noah nasceu, que já havia atendido inclusive um caso parecido com o nosso”, diz.
Para a amamentação, Erika precisou tomar uma medicação que induz a produção de prolactina , o hormônio responsável por produzir o leite humano, além de realizar um processo de sucção na glândula mamária, com o auxílio de uma bombinha que estimula a região do mamilo e dos dutos. Essa sucção imita o bebê sugando os mamilos, quando está tomando leite, e serve para que o corpo entenda que é necessário a produção de leite, uma vez que ‘algo’ está sugando os mamilos.
“Eu comecei o tratamento cerca de seis meses antes do Noah nascer e era uma frequência diária, a cada 20 minutos, que é o tempo que o bebê costuma mamar assim que nasce. Depois diminui o intervalo para cada uma hora e por fim, a cada três horas. Depois do nascimento do meu filho, a médica sugeriu que eu continuasse fazendo o procedimento até que ele parasse de mamar”, conta Erika, que reforça que esse tratamento também é aplicado em mulheres cis que, por algum motivo, não conseguem amamentar.
A influenciadora lembra que seu desempenho na produção de leite superou as expectativas das especialistas que a acompanhavam e que sua vontade de amamentar teve relação direta com o resultado.
“Geralmente, a lactação ocorre quando a mulher já está há três meses fazendo o tratamento, mas com 20 dias eu já estava produzindo leite. A médica ficou muito surpresa e feliz com o resultado. Era uma coisa que eu queria muito e ela me disse que meu empenho ajudou. Nessa minha emoção de querer demais que acontecesse, acabei liberando muita ocitocina, que é outro hormônio que ajuda na lactação”, explica.
Apesar da vontade de ter a experiência de amamentar seu filho, Erika conta que nem tudo saiu como o planejado e que não romantiza o processo. Com dois meses, Noah começou a rejeitar o peito da mãe e foi necessário dar fórmula para alimentar a criança.
A experiência de amamentação costuma ser compartilhada por muitas mulheres cis, que se apoiam com seus relatos. Muitas podem contar ainda com a vivência de suas mães, em quem confiam em compartilhar suas angústias e medos com todo o novo universo que a maternidade traz. Sem referências, Erika conta que sua jornada de amamentação como uma mãe trans foi solitária.
“As pessoas diziam que aquilo não era certo, que não era algo possível, que eu estava fazendo uma coisa errada. Eu tive medo de chegar para alguém e compartilhar minhas dúvidas, meus receios e as dores que eu estava sentido com a amamentação, inclusive com a minha mãe. Era como se eu tivesse vergonha de chegar, falar sobre o assunto, e receber como resposta: ‘Você não era para estar fazendo isso’. Eu sofria comigo mesma”, lembra a mãe.
Contudo, Erika e Beto têm uma grande rede de apoio, com uma família unida que acompanhou todo o processo desde a gestação com eles, o que a influenciadora considera que foi “muito importante”.
“A minha mãe e a mãe do Roberto vieram aqui para casa e ficaram uns 15 dias no início para nos ajudar. Eu parei completamente a minha vida para viver em torno dele e do nosso filho. Não conseguia tomar banho direito, não conseguia comer, não conseguia fazer nada. Nas redes sociais, muitas pessoas criticaram o tratamento, dizendo que leite estimulado não é leite, mas por que para mim como mulher trans, querendo fazer esse tratamento, o meu leite não é leite e quando uma mulher cis faz o mesmo procedimento, o dela é considerado o certo? Não é um tratamento diferenciado para mulheres trans”, defende a influenciadora.
A consultora internacional de amamentação, Kely Carvalho, explica que o procedimento adotado no caso da Erika segue os protocolos estipulados pela Academia de Medicina da Amamentação (ABM na sigla em inglês) , reconhecida internacionalmente. Em 2020, a instituição publicou diretrizes para o atendimento a pessoas LGBTQIAP+ e, dentre os itens, estavam orientações para o atendimento a pessoas trans e travestis.
“A Erika não foi a primeira paciente trans que atendemos”, conta Kely, que afirma que antes já havia recebido dois casos: uma travesti e uma pessoa trans não binária .
“O tratamento é o mesmo oferecido para mulheres cis, mas apenas as trans e travestis que se hormonizam. Por exemplo, no caso da travesti que atendemos, ela não se hormonizava por questões de saúde, sendo assim, ela não conseguiu produzir nenhuma gota de leite, mas ela amamentou”, enfatiza a especialista.
Neste caso, a técnica utilizada foi a da ‘relactação’ ou ‘translactação’ que consiste em colocar uma sonda no peito com leite artificial ou leite de quem gestou. “Essa paciente travesti tinha um companheiro trans que gestou a criança. Como ele não havia retirado as mamas, nós tirávamos o leite do peito dele e colocávamos na sonda para que a mãe travesti pudesse amamentar o filho”, explica Kely.
Nos três casos, a consultora de amamentação trabalhou em conjunto com a ginecologista e obstetra Ana Thais Vargas, que traz uma reflexão sobre o preconceito das pessoas com o trabalho que as especialistas desenvolvem. Ela explica que por parte da comunidade médica, até hoje, não enfrentou nenhum tipo de discriminação e que “a recepção é sempre muito boa”, além de haver muito interesse em entender como os procedimentos foram realizados.
O problema está na sociedade como um todo e, em especial, no movimento feminista radical que gera uma recepção “sempre muito violenta”, segunda a médica.
“Violenta na exposição de fotos de aulas com fotos de pacientes que foram dadas em congressos e que são tiradas de contexto, violenta nos ataques diretos com expressões chulas e até ameaças. Aparece toda hora nas nossas redes sociais. E se isso acontece conosco, que somos profissionais, que lidamos com isso em determinado tempo, imagina na vida dessas pessoas trans e travestis?”, diz a obstetra, que afirma: “Isso só me traz mais certeza de que devo continuar fazendo esse trabalho”.
Kely corrobora com a declaração da colega e explica que só passou a ser criticada pelo seu trabalho quando incluiu pessoas trans e travestis: “Enquanto eu atendia só o público cis, recebia muitos elogios sobre o meu trabalho. Quando comecei a atender as pessoas trans e travestis, os comentários foram outros. ‘Você já está indo longe demais, está inventando coisa, está querendo dar ‘suco de macho’ para os bebês tomarem”.
A consultora de amamentação defende ainda que há falta de pesquisas e publicações científicas sobre o assunto, mas que antes desses aparatos teóricos, falta “enxergar essas pessoas como pessoas”.
“Nenhum direito foi conquistado de graça para as minorias - as pessoas pretas, as mulheres e os LGBTs. Eu trabalho para que as pessoas tenham a possibilidade de amamentar seus filhos pelo tempo que for bom para elas e bom para as crianças. Amamentar no peito é mais que alimentar o bebê. Peito é comida, diversão e arte. Cada gota de leite conta”, finaliza.
“Era um sonho para mim amamentar e até hoje ainda sonho, literalmente, à noite com isso, mas não romantizo a experiência porque não foi nem um conto de fadas, não foi nada bonitinho, foi muito dolorido”, lembra Erika, que se recordou também sobre uma experiência que teve ainda na maternidade.
Nos quatro primeiros dias do bebê nascido, a mãe deu de mamar ‘errado’, mas não sabia. Com medo de ser impedida de amamentar por conta das dores, acabou não compartilhando a dificuldade com as enfermeiras.
“No início a ‘pega’ dele estava errada e eu não sabia. Para mim era só colocar no peito que ele sugava. Fiquei quatro dias dando de mamar ‘errado’, sofrendo, sentindo dor e quase chorando. A médica e as enfermeiras entravam no quarto e me perguntavam: ‘E aí está doendo?’, e eu falava que não. Tinha medo de falar que estava doendo e elas interromperem a amamentação, que era algo que eu não queria”, conta Erika.