Quando todo mundo o chamava por nome feminino, vivia trancado no quarto, angustiado e foi diagnosticado com depressão. Quando entendeu que era um menino num corpo de menina e trocou o nome, os pronomes, o cabelo e as roupas, Callebe Ferreira Marques Santos, de 14 anos, desabrochou e viu a vida melhorar: "Parece que eu saí de uma prisão, um casulo".
A maior transformação veio depois que ele recebeu apoio da mãe, a contadora Andrea Ferreira Marques, 45 anos, que o acompanha em consultas médicas, grupos de apoio e atendimentos multidisciplinares.
Em entrevista ao g1 para o Dia Nacional da Visibilidade Trans, celebrado neste domingo (29), Callebe e Andrea contaram os ganhos e os desafios de passar pelo processo de se entender como transgênero na adolescência
Callebe vive hoje com a mãe e o irmão, Felipe, de 23 anos, em São Paulo. O fato de Felipe ter se declarado gay há alguns anos contribuiu para que Andrea já estivesse com a cabeça mais aberta quando o filho caçula se declarou trans, em março de 2022.
"Sou de uma família convencional, religiosa. Sou hétero, me casei aos 20 anos com o pai deles. E eu ensinei o que eu aprendi no tradicional, que não existiam variações [de identidades de gênero e orientações sexuais]. Então, a gente não teve nenhum tipo de influência em casa para que o Felipe fosse gay e nem o Callebe fosse trans", afirma Andrea, que agora está divorciada.
Ela diz que chegou a se sentir culpada em alguns momentos, mas depois de estudar e fazer terapia entendeu que tanto o processo do Callebe, de identificação com outro gênero, quanto a orientação sexual do filho mais velho aconteceriam independentemente do que ela fizesse como mãe.
"Eu optei por ficar do lado da informação, em vez de rejeitar o meu filho, porque eu já vi muitos casos de filhos na rua."
Depois de processar tudo isso, foi a hora de falar com amigos e familiares sobre a mudança de Callebe. O adolescente conta que seu pai aceitou e já o acompanhou em atendimentos no Caps, o Centro de Assistência Psicossocial.
Alguns parentes abraçaram a mudança de imediato, enquanto outros demoraram um pouco para usar o nome e os pronomes masculinos. Alguns amigos se afastaram, mas outros apareceram e deram o acolhimento que o jovem precisava. Ele também tem uma namorada, desde 2019, que o apoiou na transição.
Callebe ao lado da mãe e do irmão Filipe Ferreira Marques Santos, de 23 anos — Foto: Celso Tavares/g1
Callebe não fez nenhum bloqueio hormonal, mas espera começar a tomar hormônios masculinos a partir dos 16 anos. O estudante também pretende fazer a cirurgia para retirada dos seios depois dos 18 anos.
Andrea tem buscado informações com profissionais e fontes confiáveis para conduzir o processo da melhor forma possível. E sempre discute tudo com o pai do adolescente.
"Marquei uma primeira consulta com endocrinologista. Eu vou junto. Eu quero entender todo o processo, como vai ser, o que vai envolver, quais os efeitos colaterais. E aí eu vou ter que autorizar", disse a mãe.
"É uma grande responsabilidade. É uma jornada em conjunto, e eu prefiro estar do lado dele apoiando. Quero que ele cresça saudável e gostaria muito que ele fosse respeitado", diz a mãe.
Não existem dados de quantas crianças e adolescentes trans existem no Brasil — não há nenhum tipo de dado oficial sobre essa população. Na Universidade de São Paulo (USP), cerca de 280 crianças estão fazendo acompanhamento para possível transição de gênero sexual.
Callebe conta que sofreu muitas situações de bullying na escola, já foi perseguido, empurrado e se machucou num dos episódios. Também passou por constrangimentos por usar o banheiro masculino da escola.
"É uma questão muito sofrida para mim. E eu ficava, tipo, 'como vou entrar no banheiro masculino?' Porque eu ficava com medo de ser agredido ou estuprado lá dentro. Tinha uma época que eu parei de usar, porque eu fiquei com medo de entrar."
Pra ele, o ideal é todas as pessoas fossem respeitadas em todos os espaços públicos.
Callebe conta que sofreu muitas situações de bullying na escola, já foi perseguido, empurrado e se machucou num dos episódios. Também passou por constrangimentos por usar o banheiro masculino da escola.
"É uma questão muito sofrida para mim. E eu ficava, tipo, 'como vou entrar no banheiro masculino?' Porque eu ficava com medo de ser agredido ou estuprado lá dentro. Tinha uma época que eu parei de usar, porque eu fiquei com medo de entrar."
Pra ele, o ideal é todas as pessoas fossem respeitadas em todos os espaços públicos.
Callebe diz que já passou por bullying e situações constrangedoras depois de assumir trans — Foto: Celso Tavares/g1
Outro desafio é a aceitação do nome masculino. Callebe diz que algumas pessoas insistem em perguntar e usar o nome da certidão de nascimento, o chamado "nome morto".
"[O nome do registro] não me representa mais. Eu não me apresento mais como uma menina, com uma imagem feminina sobre mim. E eu acho que esse nome me lembra tudo o que eu já passei de ruim. Quando erram meu nome ou o pronome, é uma violência contra mim. A gente não quer que as pessoas concordem, a gente só quer respeito."
O estudante lembra que a comunidade é alvo de todo tipo de violência e, por isso, não foi fácil se identificar como trans. "Mas não é uma escolha", reforça ele.
O Brasil teve 131 pessoas trans assassinadas em 2022, uma média de 11 por mês, segundo relatório anual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), divulgado no último dia 26. As vítimas foram 130 mulheres trans/travestis e um homem trans.
Andrea espera que mais pessoas tenham acesso a informações de qualidade para que pessoas trans, como seu filho, possam ser respeitadas e viver de forma tranquila.
"O mundo, infelizmente, não está preparado. Esses meninos que só estão querendo sobreviver, viver normalmente no mundo. Como que eu poderia rejeitar isso, como mãe, se o que eu quero é ver o meu filho crescer saudável? Então, eu escolhi estar do lado da informação. Em vez de estar do lado da ignorância."