A associação, no entanto, chama atenção para a subnotificação de casos. Apesar de em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF), ter equiparado a homotransfobia ao crime de racismo, o país ainda não tem um mecanismo nacional de referência para registro de crimes motivados por identidade de gênero e orientação sexual. Isso faz com que não haja números oficiais sobre o tema.
O levantamento do Antra também registrou outros 20 casos de suicídio entre a população trans. O número reflete o ciclo de violência a qual o grupo está exposto. “Esse dado [sobre as mortes] vem em uma cadeia de violência. Ela é psicológica, é física, até chegar na letalidade”, destaca Simpson. “Somente quando a população trans for inserida socialmente, tiver a sua cidadania garantida e respeitada, essas mortes diminuirão”, completa.
Além do problema de segurança pública, transexuais e travestis buscam ainda alcançar equidade no que diz respeito às políticas de saúde, educação e trabalho. No âmbito da saúde, por exemplo, a portaria que define as regras para acesso ao processo transexualizador no Sistema Único de Saúde, publicada em 2013, está desatualizada. Além disso, as unidades de saúde que oferecem atendimento especializado — desde a hormonioterapia às cirurgias de modificação corporal — são poucas e geralmente são restritas às capitais.
No campo da educação, o tema da transexualidade foi alvo de polêmica nos últimos anos, quando o governo de Jair Bolsonaro (PL) rechaçava a ideia de se discutir diversidade sexual e de gênero nas escolas. O ex-presidente e seus apoiadores chamavam qualquer debate sobre o tema de “ideologia de gênero” e defendiam que o discurso deveria ser combatido. Em 2019, o governo extinguiu o Programa Brasil sem Homofobia, que abrangia políticas antidiscriminação nas áreas de saúde, educação e trabalho.
“Não podemos admitir que não se nasce homem ou mulher. Que se decida o sexo lá na frente. Isso é inadmissível. Isso não pode ser aceito por qualquer um de nós. Aceitamos o comportamento de quem quer que seja depois de uma certa idade. Cada um vai ser feliz da maneira que ele achar melhor, mas esse tipo de ideologia nas escolas nós não podemos e não admitimos”, disse Bolsonaro durante discurso em março do ano passado.
Para a professora e secretária de comunicação da Rede Trans Brasil, Sayonara Nogueira, o discurso reforça o preconceito contra pessoas trans e empurra ainda mais o grupo rumo à marginalização. “A retirada de questões de gênero e sexualidade, dos documentos oficias, a disseminação de fake news, impacta de forma negativa nos nossos corpos, corpos trans, corpos LGBTQIA+, corpos gordos e corpos pretos”, destaca.
“Tudo que foge à norma e rompe com o binarismo de gênero que a sociedade cisgênera [aquela que se identifica com o gênero de nascimento] impõe cria uma força que repele nossa presença do ambiente escolar. A escola deixa de cumprir sua função social, que seria capacitar as pessoas para participarem da sociedade em que vivem, fortalecendo os valores de solidariedade.”
A presidente do Antra, Keila Simpson, defende que o debate sobre identidade de gênero e sexualidade seja incluído nos planos pedagógico curricular das instituições de ensino. “Com isso, nós não queremos fazer com que o país inteiro tenha uma ‘ideologia de gênero’. Queremos só que as pessoas aprendam a conviver com a diversidade, com o diferente, e os respeitando dessa forma”, pontua. “É que as escolas possam estar abertas a esse diálogo e que os professores que trabalham com essa perspectiva não sejam criminalizados.”
Ativistas apontam que a violência nas escolas, somada à falta de acolhimento pela família, faz com que jovens, sobretudo adolescentes trans deixem a escola de forma precoce. Sem escolaridade, a população fica sujeita ao desemprego, subempregos e à prostituição — principalmente mulheres trans negras.
“As pessoas trans e travestis no Brasil passam por um processo de exclusão diário que se inicia na própria família, que atinge o ambiente escolar, o mercado de trabalho, as próprias políticas públicas, impactando de forma negativa na forma de violência. A nós é negado o direito aos mínimos sociais. E isso tudo se remete a uma política de morte social, que inferioriza, marginaliza, isola e cria processos de repressão a nossa comunidade”, reforça Sayonara Nogueira.
Nas últimas eleições, o país elegeu, pela primeira vez na história duas travestis para ocuparem cargos na Câmara dos Deputados. A conquista histórica esbarra em um Congresso mais conservador que o eleito em 2018. O legislativo brasileiro é conhecido por barrar pautas a favor da comunidade LGBTQIA+. A criminalização da homotransfobia, a permissão para o casamento homoafetivo e o reconhecimento do nome social, grandes conquistas da população nos últimos anos, só foram possíveis pela atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), diante da inércia do Congresso em legislar sobre os temas.
Por isso, é pela via judicial que as ativistas buscam garantir direitos. “No Congresso, avanço em termos de projetos, a gente realmente não tem muita perspectiva. Obviamente, a nossa via de escape vai ser provocar o judiciário para que as nossas pautas que são emergentes e que não conseguem apoio via legislativo andem”, aponta Keila Simpson.
Existe ainda a expectativa de que a comunidade tenha mais visibilidade por parte do governo federal. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania criou a Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, comandada pela travesti Symmy Larrat.
Ela já divulgou que as ações prioritárias da pasta serão o resgate de instrumentos de saúde, a construção de ferramentas de segurança para garantir o cumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que criminalizou a homotransfobia e a criação de uma política nacional específica para o grupo.