Iniciar o processo transexualizador, seja pela hormonização ou com a cirurgia de afirmação de gênero, é algo que demanda tempo, saúde física e mental, além de muita coragem. Quando se fala em cirurgia de afirmação de gênero, o acesso se torna ainda mais difícil. No Nordeste, apenas um lugar realiza o procedimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que fica no Recife, capital de Pernambuco. A região Norte não possui sequer uma unidade que realiza a cirurgia pelo SUS.
De acordo com a endocrinologista Izabelle Cahet, que é também a médica responsável pelo Espaço Trans no Hospital Universitário Professor Alberto Antunes, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), a demanda em Pernambuco é tão grande que mal comporta a população trans do próprio estado.
A Agência Tatu analisou dados sobre cirurgias de redesignação sexual e complementares realizadas pelo SUS de 2014 até maio de 2022, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) pela Fiquem Sabendo, agência de dados especializada no acesso a informações públicas. Esses serviços foram incluídos na Tabela de Procedimentos do SUS em novembro de 2013.
No período de 2014 a maio de 2022, foram registradas 233 cirurgias de afirmação de gênero, masculino e feminino, pelo SUS. Desse quantitativo, pouco mais de 62% (145) foram no Nordeste, no único local em que se realiza os procedimentos.
Entre os procedimentos hospitalares que constam no processo transexualizador estão: cirurgias de redesignação sexual no sexo masculino e feminino , tireoplastia, histerectomia com anexectomia bilateral e colpectomia, mastectomia simples bilateral, plástica mamária reconstrutiva e cirurgias complementares de redesignação sexual.
Com os dados, também é possível ver que a quantidade de procedimentos relacionados ao processo transsexualizador teve o maior número em 2019, mas nos anos seguintes o quantitativo caiu para menos da metade. No caso de 2022, o somatório vai até maio.
O processo de terapia hormonal, apesar de mais acessível do que as cirurgias, também enfrenta dificuldades, principalmente quanto à aquisição de medicamentos. Este é um problema que prejudica toda a população trans, sobretudo as pessoas que vivem em situação de extrema vulnerabilidade social e, portanto, não possuem condições financeiras de arcar com a compra dos hormônios necessários.
A reportagem conversou com a psicanalista e advogada Luz Vasques, que é mulher trans e integrante da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil em Alagoas (OAB/AL). Luz explicou que iniciou seu processo de hormonização pelo SUS, no Hospital Universitário da Ufal, em Maceió, mas que adquire os hormônios por conta própria.
“A equipe é composta por profissionais competentes e preparados para atender as demandas e especificidades da saúde dos corpos trans, promovendo um acompanhamento seguro e responsável, imprescindível sobretudo para quem decide se submeter ao delicado processo de hormonização. Algumas dificuldades encontradas é que os ambulatórios trans costumam enfrentar a falta de medicamentos e um descaso político. Mas ainda assim há muitas pessoas corajosas e resilientes”, contou Luz Vasques sobre sua experiência pessoal.
Ter uma equipe multiprofissional, normalmente formada por médica/o endocrinologista, enfermeira/o, psicóloga/o, assistente social e psiquiatra é fundamental para atender àquelas pessoas trans que estão iniciando o processo de hormonização. Outras áreas da saúde como dermatologia, fonoaudiologia, otorrinolaringologia, mastologia, dentre outras, também são importantes nessa equipe multidisciplinar e podem ser necessárias a depender da demanda de cada paciente.
O acolhimento em ambiente hospitalar deve ser realizado por uma equipe que esteja preparada para atender, sem qualquer tipo de discriminação ou preconceito.
Segundo a endocrinologista Izabelle Cahet essa é uma preocupação recorrente no Espaço Trans do Hospital Universitário da Ufal. Por isso, são realizadas oficinas de sensibilização anualmente, que buscam conscientizar a equipe do hospital quanto ao tratamento a pessoas trans.
“É preciso sensibilizar e ter o respeito a como cada pessoa quer ser chamada, ou mesmo à questão do nome social. Por exemplo, uma pessoa trans aguardar um atendimento e ser registrada com o nome do registro de nascimento, imagina o constrangimento, né? E imagina quanta disforia isso não traz para essa pessoa. Então assim, tem que realmente existir essas oficinas”, contou Izabelle.
Quanto à disforia que uma pessoa trans pode sentir em casos como o mencionado acima, que é a mudança repentina e transitória do estado de ânimo, a psicanalista Luz Vasques também reforça a importância de ampliar os debates sobre os estudos de gênero, inclusive nas áreas de psicologia e psiquiatria.
“A falta de aceitação e acolhimento familiar, a falta de estrutura pedagógica nas escolas, a ausência de referências positivas e de redes de afeto, produzem senão o óbvio: sofrimento e marcas na alma que nenhuma ‘clínica’ ou ‘farmácia’ são capazes de dar conta”, afirma Luz.
*Reportagem: Karina Dantas — Agência Tatu | Edição: Graziela França | Visualização: Lucas Thaynan e Edson Borges.