Henrique* tem 21 anos e, apesar da pouca idade, já viveu experiências que lhe demandaram maturidade e senso de sobrevivência. Vivências que muitos adultos, talvez, não conseguiriam lidar.
Aos 15 anos ele foi expulso de casa. O motivo: a LGBTfobia típica da sociedade conservadora brasileira, que faz com que um LGBT tenha sido assassinado ou cometido suicídio em 2022 a cada 34 horas, segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB).
“Eu morava com a minha mãe, mas ainda não havia conversado sobre a minha sexualidade com ela. Quando decidi contar, com 15 anos, a conversa não caiu muito bem para ela e eu tive que sair de casa.”
O jovem teve que buscar ajuda no abrigo da Prefeitura em Taquara, Jacarepaguá, região onde morava na Zona Oeste da capital fluminense. Contudo, o abrigo era apenas para adolescentes, o que faria com que Henrique tivesse que procurar outro lugar para se abrigar ao atingir a maioridade.
“Próximo de completar os 18 anos eu não sabia o que fazer porque eu teria que sair do abrigo. Era desesperador, eu não tinha para onde ir. No caso, eu teria que ir para o abrigo de adultos, que era algo que eu não queria porque você vê tudo lá. Você dorme com moradores de rua, pessoas que já foram presas por homicídio, pessoas viciadas... Eu tinha receio de ir.”
Após passar um tempo na casa de uma irmã, o rapaz precisou voltar para o abrigo. Lá conheceu um homem que sugeriu que ambos dividissem um aluguel, o que Henrique aceitou. Contudo, ele não sabia que o homem era viciado em cocaína, o que fez o jovem iniciar o uso do entorpecente.
“Ele saía todo dia de manhã para trabalhar antes de eu me levantar. Um belo dia, ele nunca mais voltou. Ele estava devendo dois meses de aluguel e eu não sabia. Fiquei ainda um mês na casa, mas o senhorio ia me cobrar quase todos os dias.”
Sem condições de manter o aluguel, o jovem foi despejado da casa e mais uma vez se viu em uma situação de desamparo. Ele tentou voltar para o abrigo da Prefeitura, mas como havia saído recentemente, sua vaga não existia mais. Ele teria que passar por todo o processo de cadastramento novamente e entrar na fila mais uma vez, o que ele não estava disposto a fazer.
“Fui a um caixa eletrônico e pedi um empréstimo. Com o dinheiro do empréstimo, consegui ficar em um hotel por um mês, mas o dinheiro acabou. Mais uma vez eu não sabia muito o que fazer, até que conheci outro homem, por meio de um amigo, e decidi pedir ajuda a ele.”
Segundo Henrique, ele teria perguntado ao homem se ele conhecia alguém com quem o jovem poderia morar até resolver sua situação. Sensibilizado, o homem teria oferecido a própria casa de abrigo. Com o tempo, eles começaram a desenvolver uma relação afetiva romântica. O jovem estava com 19 anos no período.
“Fiquei cerca de cinco meses morando com ele. Depois de um tempo ele começou a perceber minhas crises de abstinência da cocaína - o que eu não tinha contato para ele - e ansiedade. ‘Henrique, olha, eu gosto muito de você, tenho um carinho enorme, mas você mentiu para mim. Quero muito ficar com você, mas você precisa se cuidar primeiro’", teria dito o homem ao jovem.
“Eu não queria voltar para o abrigo, buscamos então uma outra solução. Uma amiga de infância estava morando na Casa Dulce Seixas e me passou o contato da Shirley [a coordenadora da casa]. Isso aconteceu em 2021. Fiz uma entrevista com a Shirley e ela permitiu que eu fosse para a casa”, conta Henrique que afirma que na casa de acolhimento da Baixada Fluminense, que atende em sua maioria pessoas LGBTQIA+ , conseguiu atendimento médico para tratar de sua saúde mental.
“Aqui consegui tratamento com psicólogo e psiquiatra, estou tomando medicação. Já tive algumas recaídas, mas sinto que estou melhorando. É um processo. Eu espero terminar meus estudos e terminar meu tratamento para que eu possa encontrar um lugar para mim”, diz ele, que acrescenta. “Me atrasei na escola por conta de depressão e ansiedade . Meu sonho desde criança é me formar em veterinária".
Shirley Berssey sedia em sua própria casa, no bairro de Nova Iguaçu, a Casa Dulce Seixas, “a única casa de acolhimento na Baixada Fluminense que acolhe LGBTQI+ em vulnerabilidade social”, diz a bio da rede social da instituição.
A história com trabalho social se mistura à história de vida de Shirley, uma travesti que veio do interior do Ceará para o Rio de Janeiro na busca de mais liberdade para expressar sua identidade.
Ela relata que cresceu em um ambiente conservador e que era constantemente ameaçada pelo pai, especialmente quando passou a se entender como uma pessoa trans, o que ocorreu muito cedo, em torno dos 10 anos de idade. Nesta época, para fugir da LGBTfobia , ela decidiu se mudar à capital do Estado nordestino em busca de melhores condições de vida.
“Disse que ia trabalhar em uma padaria, mas era mentira, fui trabalhar de doméstica porque queria viver minha vida do meu jeito. Fui muito explorada por ser de menor, não tinha salário fixo, foi uma experiência muito dolorosa”, relembra a ativista.
“Uma amiga me convenceu a vir para o Rio de Janeiro, em busca de melhores condições e também para colocar as próteses mamárias. O segredo é o ‘peitinho’”, brinca ela durante a entrevista. Shirley diz ainda que quando chegou na capital fluminense “não tinha nem 14 anos”.
“Vim de carona e, nessa brincadeira, levei quase 10 dias para chegar aqui [no Rio de Janeiro]. Vim em cima de caminhão de laranja, de galinha, de tudo o que você possa imaginar. Fui obrigada a fazer sexo por causa de uma coxinha, por causa de um prato de comida, por causa de uma carona. Foi um sofrimento que você não tem noção.”
Shirley conheceu Dulce quando já era mãe de santo: “Ela veio fazer uma consulta espiritual e dona Maria Padilha curou ela. Dulce ficou muito grata e começamos a desenvolver nosso trabalho social. A sede da Casa Dulce Seixas foi uma doação de Dulce à Maria Padilha.”
“Na época da pandemia, tudo ficou muito mais difícil. Tínhamos em torno de 30 pessoas morando na casa. A Dulce morreu nesta época. Ela foi uma luz de guarda na minha vida, foi uma pessoa que eu serei eternamente grata enquanto vida e espírito eu existir. A Casa leva o nome dela em homenagem à sua vida”, diz Shirley que informa que hoje o abrigo conta com cerca de 28 acolhidos.
Davlyn Lotus, a secretária geral da Casa, informa que a instituição desenvolve diversos projetos que envolvem trabalho de abrigamento, desenvolvimento profissional e assistência social.
“Temos o projeto ‘Dulcemente Acolhedora’, que é o trabalho de abrigamento de pessoas que estão em situação de rua. Estamos também iniciando um projeto chamado ‘Dulcemente Capacitadora’ com a oferta de cursos profissionalizantes. Ainda não começamos porque precisamos fazer algumas reformas, mas a ideia da primeira edição é oferecer curso de panificação”, informa a secretária.
“Também estamos criando um projeto chamado ‘Dulcemente Cultural e Literária’, que é a abertura de biblioteca comunitária, com atividades de alfabetização e acesso à leitura para a comunidade local. E temos também o ‘Dulcemente Solidária’, que é o projeto social de distribuição de cestas básicas, encaminhamento para consultas médicas na Fiocruz, e apoio jurídico também”.
Shirley acrescenta: “A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) também ajuda as meninas trans que precisam de hormonização, dá apoio para as pessoas que encaminhamos e que vivem com HIV , apoio para quem toma PrEP . A instituição tem sido uma grande ajuda, fornece ainda mensalmente algumas cestas básicas.”
Além de Henrique, outra pessoa acolhida pela instituição é a bacharel em direito Isabela* , de 30 anos, recém-chegada à Casa Dulce.
“Um amigo me passou o contato da Shirley. Eu estava em situação de rua desde o dia 4 de abril, quando fui expulsa da casa da minha genitora”, diz Isabela se referindo à sua mãe biológica. Ela faz uma reflexão sobre o curto período em que precisou dormir na rua.
“A experiência foi péssima. Nenhum ser humano deveria passar por isso, mas também me fez refletir sobre muitas coisas. Sobre os pequenos privilégios que nós temos em casa, como ter um teto. É uma tensão estar na rua o tempo inteiro porque você fica vulnerável a qualquer um. Se você dormir ou cochilar, em um segundo uma pessoa pode vir, te machucar, ou te matar.”
Isabela foi parar nas ruas depois que a casa onde morava com a avó, em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, passou por uma reintegração de posse, uma vez que o imóvel havia sido deixado à avó da bacharel em testamento, por um amigo, mas para uso vitalício, ou seja, apenas em vida.
A avó de Isa tinha Alzheimer em estágio avançado e morreu no final de 2021. A jovem afirma que considerava a avó sua “grande mãe”.
“Morei com ela por 12 anos consecutivos. Antes eu morava com meus pais. Era uma situação péssima porque meu pai era usuário de drogas e havia muitos conflitos. Quando eles se separaram, eles perderam a casa e eu fui morar com essa minha avó.”
A auto-identificação de Isabela como uma pessoa travesti ocorreu durante a pandemia. Quando o início de reintegração de posse foi dado, no final de 2022, ela decidiu sair da casa para não ser despejada. A falta de moradia fixa a fez se envolver com as drogas, assim como ocorreu com Henrique.
“Eu fui ajudada por amigos a alugar casa, alugar quarto, morei em vagas hostel e em um desses hostels eu conheci a cocaína. A primeira vez que eu fiz o uso, eu não sabia o que eu estava fazendo. A pessoa que me apresentou não conversou comigo sobre os riscos, eu apenas usei. E aí eu me entreguei por seis meses, fiz uso diário na tentativa de me destruir. Não tive recaída até então, estou limpa, e não tenho a menor vontade de voltar a usar”, diz ela, que acrescentou no momento da entrevista: “O que você está vendo aqui é uma reunião de cacos do que aconteceu”.
Ela conta que depois dessa fase voltou a morar com sua mãe biológica, mas que a relação não foi amistosa: “Não existiu nenhuma agressão física, mas houveram agressões verbais e psicológicas de ambas”.
Após ter conseguido uma vaga na Casa Dulce, a bacharel afirma que finalmente se sente “em paz”: “A experiência aqui tem sido maravilhosa. Estou me sentindo em casa e acolhida. Estou em paz. Estou vivendo o hoje”.
A Casa Dulce recebe doações pela chave pix (21) 992055064 - Antônio Ivanisio de Souza.
Segundo o Censo da População em Situação de Rua da cidade de São Paulo, em 2019 havia 24.344 pessoas em situação de rua no município e no final de 2021, no período pandêmico, o número saltou para 31.884, um crescimento de 31%.
Uma das instituições que luta em prol deste população na capital paulista é o Centro de Referência e Defesa da Diversidade Brunna Valin (CRD), que recebeu o nome da ativista dos direitos trans e referência na luta contra HIV/Aids após a morte da mesma, em junho de 2020.
“O Centro de Referência foi criado há 14 anos devido ao trabalho que o Grupo Pela Vidda fazia, que era um trabalho de prevenção e de acolhimento de pessoas que viviam com HIV, especialmente na região central de São Paulo”, diz Eduardo Barbosa, vice-presidente do Grupo Pela Vidda/SP e gerente do CRD.
“No trabalho de prevenção, com as entregas de camisinhas, de gel lubrificante e orientação, percebeu-se que havia uma dificuldade das pessoas em vulnerabilidade, como os moradores de rua e profissionais do sexo, de aceitarem os métodos. Com isso, o CRD foi criado para que houvesse um trabalho de conscientização, a partir de uma perspectiva da assistência social.”
Eduardo afirma que hoje há no Centro “um cadastro de cerca de 6 mil pessoas” e que “mensalmente atendemos cerca de 500 a 600 pessoas, com mais de 2 mil tipos de atendimentos”.
O gerente explica que o trabalho do grupo consiste em fazer uma “busca ativa nas ruas, especialmente com a população LGBT+” e encaminhá-las para os serviços que o Centro fornece.
“Temos uma equipe que conta com profissionais da psicologia, assistência social, advocacia e pedagogia, que acolhe essa população que vem da rua”, conta Eduardo, que acrescenta: “Fazemos uma primeira abordagem, um cadastro, e a depender de cada caso, fazemos um acompanhamento. Construímos um ‘plano individual de atendimento’, a partir da lógica da assistência social, para questões de curto, médio e longo prazo”.
Com sua experiência, Eduardo avalia que há diversos motivos que fazem com que essa população em específico vá morar na rua, mas que, geralmente, têm a ver com uma migração estadual e LGBTfobia.
“Nosso maior público de atendimento são as pessoas trans e travestis. A maioria delas vem de outros Estados para São Paulo, em busca de oportunidades de emprego e também para ‘ser quem são’. Geralmente sofreram abusos, violências, e vêm para a capital paulista na busca de realizar um sonho, mas aqui encontram toda a dificuldade”, afirma o gerente. “Temos recebido muitos jovens gays também com o mesmo relato, especialmente com violência familiar. ”
A assistente social Edilene Ferreira, que trabalha no CRD há 10 anos, corrobora com a avaliação de Eduardo.
“A grande maioria dessas meninas saiu de casa muito cedo devido à transfobia. Geralmente a expulsão de casa acontece quando elas se identificam como meninos gays, depois vem a descoberta como travesti e todo o contexto da autoaceitação. E muitas delas param na prostituição para sobreviverem, e daí começam a usar drogas. Vira uma bola de neve. Elas já chegam a nós muito machucadas pela sociedade.”
Para a especialista, o público LGBT+ tem receio de se abrir quando chega para o atendimento porque o preconceito da sociedade é muito grande: “Nós acolhemos as meninas e escutamos as demandas delas [...] Eu preciso conquistar a confiança delas primeiro para depois começar o trabalho e obter êxito, senão o trabalho fica ‘picado’”.
Heitor Werneck é produtor cultural, designer e ativista em direitos humanos que foi uma criança de rua. Hoje ele desenvolve um ativismo na ponta com pessoas LGBT+ em situação de rua, entregando marmitas veganas em regiões periféricas de São Paulo.
“Eu sou uma pessoa autista e fugi de casa com 10 anos. Morei nas ruas até os 14, mas não aguentei a violência. Comecei a ver muitas pessoas morrendo”, diz o ativista. “As crianças de rua, se não estiverem com um adulto, elas andam em grupo e são altamente violentas porque a criança de rua sofre de diversas maneiras. Não dá para confiar no adulto desconhecido”.
Heitor conta que quando sua “turma” morreu, ele buscou abrigo em um colégio. “Era uma escola tecnóloga em agropecuária. Eu estudava durante o dia e, à noite, dormia na escola. Recebia de tudo, alimentação, acolhida, professor, médico... tudo.”
O produtor cultural defende a pauta sobre os direitos da população LGBT+ de rua desde os anos de 1990, mas reclama da falta de apoio parlamentar.
“Indiquei projetos para vários vereadores e não tive devolutivas. A população de rua LGBT+ não é um objeto de vista de nenhum vereador, de nenhum deputado, de nenhum político. Não há nenhum interesse, inclusive de parlamentares LGBT+, a não ser quando é midiático”, denuncia.
Ele atribui à sua “estética de rua” a facilidade que tem para abordar as pessoas em vulnerabilidade, o que ajuda também a conscientizar sobre a busca por serviços públicos.
“Sou todo tatuado, falo na mesma linguagem que eles. Chamamos isso de ‘linguagem de pares’, é algo que sempre falo com a Prefeitura, sobre a importância de ter ‘pares iguais’ nas ruas para conversar com as pessoas que moram lá”, diz Heitor, que acrescenta. “Dessa forma, você consegue levar elas para um tratamento de psiquiatria, médico em geral, tratamento de HIV, hormonização, entre outros. É mais fácil do que um agente de saúde que as pessoas na rua não se identificam".
Ele conta que sua grande parceria no momento é a Cruz Vermelha de São Paulo, que doa alimentação. Ele também recebe ajuda das Secretaria Municipal de Direitos Humanos: “Há três gestões mantenho essa parceria”.
Heitor cita ainda o ex-deputado federal Alexandre Frota que “também conseguiu uma emenda parlamentar que me permite continuar distribuindo comida às pessoas em situação de rua da cidade”.
Contudo, Heitor ressalta que boa parte das doações vem dos frequentadores do “Projeto Luxúria”, uma festa fetichista LGBT+ inclusiva para maiores de 18 anos que ele promove todo mês há quase duas décadas.
“Se a pessoa leva um alimento ou itens de higiene básica, ela tem um desconto no ingresso da festa. Fora isso, as pessoas que costumam ir ao evento fazem vaquinhas entre elas, quando peço ajuda. Profissionais de sexo também me ajudam muito. Defendo eles com unhas e dentes porque existe muito preconceito, mas não é ONG, nem padre, nem espírita que ajuda, mas sim eles”.
“Eu pago uma cozinheira trans e um transportador LGBT+ para me ajudar com a distribuição das marmitas. Eu transformo a ação social em trabalho para a comunidade”, finaliza.
* Os nomes dos acolhidos pela Casa Dulce Seixas que concederam entrevistas foram alterados para preservar suas identidades.